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Trabalhar fora, ainda uma culpa?

                 O tempo mais curto que se tem é para estar com os filhos. Eis aí, quem sabe, um dos mais delicados problemas da família hoje. De um lado, a mulher que tem necessidade, desejo e potencialidade para uma vida mais pessoal e, para isso, de uma profissão. E aí não tem pacto. Quem não trabalha, em nossa cultura, é uma pessoa dependente, pendurada na profissão do marido. Uma pessoa sem segurança pessoal, real, objetiva. Mesmo quem não precisa trabalhar por necessidade, precisa de uma profissão. Hoje as pessoas são aquilo que elas fazem. E os próprios homens começam agora a querer uma companheira, não apenas a boa esposa e a boa mãe. Para um número cada vez maior de mulheres já não há muita escolha: é dentro dessa realidade que os seus filhos estão nascendo.

                     Por outro lado, temos duas outras realidades. Uma, social: a sociedade ainda não forneceu nenhuma forma convincente e eficiente de resolver o problema da substituição da mãe. A outra realidade é psicológica, humana e milenar: criança precisa de mãe. Por aí já se vê que essa questão de ter ao mesmo tempo de trabalhar e de cuidar dos filhos não vai ser resolvida sem um certo grau de conflito. Eu acho que, se a mulher está bem amadurecida, se ela se trabalha emocionalmente, pode resolver o problema da culpa. Se ela tem consciência das suas possibilidades, dos seus limites, se ela não carrega dentro de si uma quantidade de ódios e conflitos inconscientes, ela pode resolver o problema da culpa patológica em relação ao tempo em que está longe do filho. Essa culpa patológica seria decorrente de uma problemática emocional, que, aliás, ela tem de resolver independente do filho. Agora, pelo conflito, todas as mães de hoje certamente vão passar.

                 Hoje estou no meu quarto filho e, depois de tanta experiência e tanta terapia, sinto que a relação com meu último nenê é muito mais leve, muito mais destituída de culpa. Mas eu ainda tenho conflito. Ainda é uma coisa sofrida, para mim, ficar horas longe dele. E olha que eu me sinto muito privilegiada em relação à grande maioria das mães. Mas como cada mãe vai resolver seu conflito? Parece que aí há muitos tipos de mãe. Tem a que trabalha, fica o dia inteiro fora e diz que o que vale é a qualidade. E que qualidade pode haver em dez minutos diários com o filho? Outras, para não entrarem em contato com o conflito, ou a culpa, simplesmente não lidam com o problema. E de fato abandonam a criança. Outras a entregam para pessoas que realmente não têm coragem de examinar se servem ou não. Racionalizam dizendo que está tudo bem, e desligam.

               Ora, é sabido que uma relação com uma criança pequena exige muito. Bebê exige mãe 24 horas por dia. Mas aí eu gostaria de explicar o que eu entendo por mãe. Mãe, para mim, é alguém que esteja centrado nas necessidades da criança, que esteja se preocupando, cuidando, responsável: ligada! Quanto menorzinha é a criança, mais precisa desta relação simbiótica. E isso, quando a relação está boa, ocorre meio naturalmente. A necessidade do nenezinho é a da mãe, naturalmente. O prazer dele é o prazer da mãe. Essa ligação simbiótica entre mãe e filho é tão forte que, aqui em casa, até a Lili, a cachorrinha, percebia e ia me buscar onde eu estivesse quando o nenê chorava.

                       Este conceito de mãe – alguém que está realmente ligado – é muito importante na hora de escolher quem vai ficar com a criança. A pessoa escolhida deve também ter, em boa medida, essa capacidade. Se ela – a babá, a enfermeira, a empregada – está muito centrada em suas próprias necessidades e problemas, acho que não serve. Não tive boas experiências, por exemplo, com enfermeira. Uma era muito eficiente, mas emocionalmente muito distante do bebê. A outra se ligava muito à criança, mas de forma muito complicada. Ela entrava competindo no papel de mãe e contava, como glória, que quando ela saía das casas, as crianças adoeciam de saudade. Contava que, com ela, as mães nem precisavam mais cuidar do filho. Então ela se ligava emocionalmente, mas não era uma transa saudável. Não era uma transa centrada no que a criança precisava, mas na sua própria carência de que a criança se ligasse nela. Eu não estava satisfeita, mas no fundo me perguntava: será que eu não estou com ciúme? No fim, confiei em minha intuição e despedi esta enfermeira. Lamentando muito. Porque uma parte minha dizia: está ótimo, ela se dedica e assim eu e meu marido ficamos livres para trabalhar. Era o que todo mundo queria, e como é fácil racionalizar em cima do que todos, no fundo, estão querendo...

               Bem, como resolvi o problema? Aí entrou um pouco de sorte. Acabei encontrando uma pessoa, que por acaso é minha parenta, uma mãe aposentada. Dessas pessoas que já criaram os filhos e estão com dificuldade de retomar a profissão neste tempo de desemprego feroz. Eu fico com o nenê de manhã, ela fica de tarde. Ela adora a criança e eu fico tranqüila, sem um pingo de ciúme. Desde que seja numa relação boa, quanto mais mãe meu filho tiver, melhor. E, neste caso, eu sentia que podia confiar. Então eu tenho muito um critério bastante claro com quem e por quanto tempo eu posso deixar.

Junto ao filho, mas frustrada

                   Conto meus próprios erros e acertos para mostrar que sei o quanto não é fácil substituir uma mãe. E, mesmo indo trabalhar, você não pode se dispensar de estar sempre ligada, disponível na medida do possível. Quando estou de nenê em casa, digo claro para os meus pacientes que, de repente, posso faltar e pergunto se querem continuar a terapia nessas condições. Mas isso eu, psicóloga. Numa sociedade competitiva como a nossa, isso tem suas conseqüências profissionais. Para certos profissionais pode até ser impossível esta flexibilidade.

                   Penso, então, que a mãe pode até resolver o seu problema emocional de culpa, mas nunca evitar o conflito. Porque o conflito é baseado em problemas concretos da realidade que terminam dificultando muito. Achar uma boa creche, por exemplo. Não é fácil, mesmo para quem tem dinheiro para pagar. Outro lance sério: tudo o que se refere à educação é muito desvalorizado em nossa cultura. Estou chamando de educação também o ato de cuidar de um nenê. Entre nós, dedicar-se à educação é um ato evangélico, espécie de voto de pobreza, de tão mal pago e tão desvalorizado. Muitas pessoas realmente vocacionadas terminam cansando e desistindo.

               Na família, a mulher neste ponto começa a ter alguma ajuda e mais compensação. A presença cada vez maior do pai na educação do filho é, por exemplo, um elemento novo que está pintando e que ajuda muito a diminuir o conflito. Criança precisa de mãe. Só que para ser mãe não precisa ser mulher. Essa qualidade de ser mãe – estar ligado – pode ser vivida tanto por um homem como por uma mulher. E a própria ligação da mãe no filho, se não for temperada por um pouco de pai, pode virar superproteção, culpa. A presença maior do homem faz a mãe parar, pensar, distinguir o que é dela, o que é do filho, separar a intuição materna da realidade. O pai ajuda a mãe a ver que o nenê não é qualquer coisinha, que se desmancha.

                  Para isso, a mulher precisa aprender a perder espaço. Isso eu senti muito mais conscientemente por ocasião do meu quarto filho. Queria a colaboração do meu marido, mas bem que me doía um pouco deixar que fizesse as coisas do jeito dele, que eu não fosse mais a única pessoa importante por ali.

                   Na medida em que a criança vai crescendo, a mãe naturalmente vai tendo mais espaço. Agora, no caso do nenê, nos primeiros meses, aí não adianta sofisticar. Aí a mãe deve prolongar ao máximo possível sua presença junto ao filho. E, depois, escolher muito bem sua substituta. Porque ela continuará sendo a responsável. Está trabalhando, tudo bem, mas está olhando, cuidando, telefonando, sabendo o que comeu, que cocô fez, como é que está seu estado emocional. Claro que não vou receitar para todos, mas na minha profissão pelo menos eu consigo fazer isso. Se sinto que um filho está num momento especial, dou um jeito de ficar mais. Numa época, por exemplo, meu nenê estava com muita dificuldade para dormir. Senti que era porque eu estava ficando longe dele mais tempo. Ele estava com três, quatro meses, um momento importante. Dei um jeito de ficar mais com ele, até o problema passar.

               Então, quando eu vejo que a criança está numa fase crítica, procuro acompanhar, mesmo os mais velhos. Cada mãe faz como pode, mas o importante é que ela continue sempre uma presença no sentido de que é alguém que acompanha, que sabe o que está acontecendo. Acontecendo com o emocional e não só com a saúde física. Estar ligado, que eu digo, é isto, poder captar os momentos mais importantes do filho.

             Certo dia não pude atender um cliente meu, que tinha vindo de Campinas, porque um dos meus filhos estava com gripe. E expliquei: não é qualquer gripe, não é gripe, tem um pouco de febre, ele está um pouco deprimido e precisa de mim. Isso até fez muito bem para o meu cliente, cuja história de vida não levava muito a acreditar que alguém pudesse estar mesmo ligado em outro. Sua mãe jamais lhe dará esta qualidade de amor. Ele, por exemplo, nunca se permitia faltar ao trabalho, por motivo nenhum, nem que ele próprio precisasse muito disto. Não conseguia ser boa mãe para si próprio; não tinha este modelo.

            A maior ou menor presença junto ao filho vai depender de muitos fatores concretos. Mas ser mãe implica sempre numa administração enorme, isso não há como negar. Uma coisa é ter mãe que está fora, trabalhando, e outra coisa é sentir-se abandonado. Se o filho sente que a mãe, de qualquer forma, esta prestando atenção nele, que está presente quando ele mais precisa, isso faz uma grande, decisiva diferença. A mãe pode estar o dia inteiro com o filho e frustrada, porque não está tocando sua vida, com um monte de raiva inconsciente por causa disso, com dificuldade de ter o coração aberto para ele. A mãe que se permite ter sua vida pode sentir-se também muito mais livre para amar, para estar com o filho numa boa. Quem consegue dizer um não tem um sim mais cheio de valor. Eu não acredito em alguém frustrado, fazendo um enorme sacrifício pelo outro, e conseguindo amar. A qualidade de amor que vem daí não pode ser boa porque amor anda junto com prazer, mesmo no sacrifício.

Só posso dar o que eu tenho

                    E ser mãe é, também, saber separar. Perceber, por exemplo, que está na hora de dar espaço para que pai e filho transem mais entre eles. Para que os  filhos fiquem mais com os amigos, com a própria escolinha. E também para que ele descubra os seus próprios recursos, cuidar de si mesmo; ou de ficar sozinho. Há vantagens na separação. Tem um significado importante para a criança lidar com uma certa ausência da mãe, saber que ela vai e volta. Uma vez entre três ou quatro anos, um dos meus filhos estava com dificuldade de adaptação à escola. Eu então o acompanhava até a escola. As professoras eram ótimas, eu tinha confiança na equipe toda, sentia que meu filho estava muito interessado em ficar na escola, em curtir as outras crianças. Mas ele estava com muita dificuldade também em se separar de mim. Então, quando eu me afastava, ele chorava. Não queria que eu fosse embora. Mas, quando eu agüentava me afastar, ele chorava um pouquinho e depois ficava bem. Neste momento de sua vida, se não tivesse agüentado me separar dele, eu o teria prejudicado.

                     Aí é que eu acho importante estar ligado nos momentos do filho. Não querer ficar na escola pode, de fato, significar que a criança não está bem emocionalmente, não vai agüentar o tranco. Eu percebi claramente que não era esse o caso do meu filho. Ele estava precisando transar outras crianças, o que ele tinha era um certo medo de crescer. Crescer é sempre perder alguma coisa para ganhar outra. Eu percebia que cabia a mim ter a coragem de desgrudar-me dele, de deixá-lo na escola. Ele estava emocionalmente bem, ia agüentar perder. E um dia eu tive que afastar as mãos dele, que se grudavam nas minhas. Ele ficou lá na escola, eu fui chorando para casa. Ele chorou um pouquinho e logo foi brincar numa boa. Eu chorei mais do que ele. Por isso é muito importante discriminar o que é culpa da gente e necessidade da criança. Isso exige lucidez, maturidade e uma boa relação com o filho.

                    Exige muito amor. Quando você ama, você olha o outro, a necessidade real do outro. Não olha tanto para si, porque isso é uma grande fonte de culpa: estar muito preocupada em ser boa mãe. Com a imagem que a gente tem de si mesmo como mãe. Mãe é um papel muito valorizado na nossa cultura. Mulher que não é boa mãe é um monstro. Então, muito da culpa vem das necessidades narcisísticas da gente ser boa mãe, de ser bem sucedida, de não falhar. A mãe que se revê, que amadurece emocionalmente neste ponto, vai sofrer mais conflitos concretos em relação à creche ou à substituta do que culpa patológica em relação ao tempo em que é obrigada a ficar longe do filho.

                 Em relação ao meu quarto filho, por exemplo, sinto que a relação é mais limpa. Não tenho dentro de mim promessas fantásticas para ele. Promessas impossíveis, fora dos meus limites. Já não tenho tanto aquela coisa de ele ter que ser feliz, eu ter que ser boa mãe. Temos agora um contrato mais limpo: “dou o que eu tenho, espero que você fique numa boa com isso e conte sempre comigo naquilo que eu puder”. Não fico fantasiando que eu posso muito além do que aquilo que realmente posso. Sei da generosidade que tenho e a que gostaria de ter. Eu não tenho generosidade suficiente, por exemplo, para deixar de trabalhar por causa dele. Essa eu não tenho. Não tenho e não adianta ficar inventando coisas em cima disso. Então fica uma relação mais clara, com menos culpa e mais prazer, sem visgos estéreis.

               E assim também a mãe não fica dependurando tantas expectativas nos filhos que, à medida em que você precisa desesperadamente ser boa mãe, precisa desesperadamente que eles sejam bons filhos. Meu filho vira o testemunho de meu sucesso ou do meu fracasso. E aí, a qualquer problema que tenha, o filho vai lidar com as frustrações dele e com as da mãe. Já numa relação mais limpa de expectativa, o filho pode até claramente reclamar que a mãe está pouco em casa, a mãe dar as suas razões, quebrarem o pau, e ambos crescerem com isso. Mas diante da mãe sacrificada o filho só pode ser bonzinho e calado.  

              Mas, repito, há sempre o problema social, econômico, e aí eu não posso muitas vezes decidir minhas condições. Como psicóloga, eu só posso dizer que até dois anos acho muito lamentável que a mãe tenha de trabalhar em tempo integral. A menos que ela consiga um bom substituto, o que não é fácil. Pelo menos esta mãe precisa saber que, até pelo menos dois anos, administrar o filho de longe é mais complicado. E tratam-se de dois anos que são a base da vida dele. Fico pensando o seguinte: se a vida me colocasse realmente diante de uma situação de, com filho pequeno, ter de trabalhar em tempo integral, eu tentaria não sentir culpa nenhuma por isso. Aliás, culpa só atrapalha. Só posso dar o que tenho. E com isto é que é barra agüentar lidar – com as nossas limitações. Com a nossa impotência. Não é fácil. um certo conflito sempre vai haver. Porque amar é saber que o bem estar do outro te toca pessoalmente. Então você vai sofrer quando o outro não está bem. Você fica dependendo do outro para o seu bem-estar. E para o filho pequeno seria melhor, claro, estar com a mãe. Mas eu acredito também que a mãe tem o coração cheio de afeto, de amor pelo filho, de alguma forma ela passa a qualidade deste amor. Mesmo que precise trabalhar oito horas por dia, essa mãe pode até dar mais do que aquela, por exemplo, que está em casa dependurada no filho porque tem medo de encarar a vida profissional, de não ser bem sucedida, e está usando a criança como desculpa. Essa mãe pode até dificultar o crescimento do filho porque, se o filho crescer ela perde o emprego, que é cuidar dele.

                  É bom lembrar, também, que a escolinha pode ser um fator de fortalecimento emocional da criança. A família dos dias de hoje é muito fechada, são pai, mãe e filho numa relação muito estreita. Muito estreita porque o filho depende emocional e financeiramente do pai e da mãe. Antigamente existia a grande família. Na cidadezinha de Minas, onde eu nasci, se tivesse perdido os pais seria criada por muitas tias e parentes. Era uma vida meio comunitária. Agora os pais são tudo na vida do filho. Criança hoje que só vai aos sete anos para a escola fica muito fechadinha – é pai, mãe e acabou. Então, briga com a mãe ou o pai, parece que o mundo acabou. Fica uma relação muito ameaçadora. Indo à escola, ela descobre outros recursos afetivos, outros amigos, professoras significativas. Isso é particularmente importante numa sociedade como a nossa, onde não é fácil fazer laços. A escola vira, neste sentido, uma fonte afetiva muito importante.

Ela chega devendo e quer pagar

               Agora, que a mãe aproveite ao máximo os primeiros meses de presença integral junto ao filho. Aproveite para estar muito presente mesmo. Para dar amor mesmo. Bobagem isso de achar que a criança, às vezes, deve ser frustrada para aprender. No começo a mãe tem que ser um inesgotável centro de mordomias para o filho. O nenê chora? Deixar chorar senão se acostuma mal? Coisa nenhuma. Ele chora porque está sofrendo alguma frustração e precisa da mãe. A realidade já se encarrega de frustrar o bebê. Ele já sente frio, calor, fome, dor. Ele precisa é de muita mãe junto dele. Mãe seguindo plenamente a intuição de que não deve deixar sofrer. O bebê neste momento começa a lidar com o fato de que ele e a mãe não são uma coisa só. E quanto mais coisas boas ele obtém na relação com a mãe, quanto mais vivências gostosas, com mais saúde emocional ele vai enfrentar a frustração e a raiva pelas coisas ruins. Se ele tem poucas compensações, a raiva torna-se coisa muito ameaçadora, que ele não consegue elaborar bem. Quanto mais satisfatória for a relação nestes primeiros meses, melhor vai enfrentar a separação quando a mãe voltar ao trabalho.

             E é bom lembrar, finalmente, que a mãe permanentemente atacada pelo problema da culpa não deve atribuir isso ao filho. Esse problema está ligado mais à sua personalidade. Há mães, por exemplo, que acham que o que dão para os filhos é sempre pouco. Ainda ontem eu estava lidando com uma mãe assim. Ela trabalha fora e cuida muito bem dos filhos. Sempre achando que dá pouco. Tentei mostrar que é o contrário, que ela dá demais. O que ela precisa é agüentar pôr limites, dizer não para os filhos, ela própria existir naquela relação. Os filhos notarem que existe gente ali, não uma fábrica impessoal de mordomias. E os filhos dela são, inclusive, crianças muito sem limites, birrentas, vivem exigindo e xingando. Ela nunca diz não porque está sempre tentando lavar a culpa de não estar o dia inteiro à disposição deles. Aí perde a noção da sua necessidade de trabalhar e da real necessidade dos filhos. Ela não agüenta assumir sua própria realidade. No dia que conseguir vai ficar tudo mais limpo, para ela e para os filhos.

                Mãe que fica cedendo tudo para os filhos vira aquele pai tradicional que chegava em casa, brincava um pouco, dava um docinho – e quem educava era a mãe. Se a mãe faz isso, quem vai educar? A empregada? No caso desta mãe, sinto que os filhos cutucam, provocam exatamente para pedir uma definição dela. Sentem que a mãe é muito boazinha, mas só porque não assume a raiva dela, está achando errado e não fala. As mensagens todas ficam veladas, porque o importante para ela é levar culpa. É dar uma de boazinha, seduzir a criança. Ela poderia chegar e dizer bem claro, para si mesma e para os filhos: trabalho mesmo e não estou devendo nada pra vocês e nem vocês pra mim. Mas não. Ela já chega em débito e tenta apagá-lo – seduzindo.  A criança aproveita, ultrapassa todos os limites e, em vez de agradecida, fica apenas malcriada, agressiva, destrutiva. A mãe nem se defende, porque sente-se cheia de culpa. E o ciclo continua: a mãe se mostra tão destruída que é a vez dos filhos ficarem com culpa. No que ela consegue ser mais verdadeira, quebra este jogo complicado. Essa é a típica mãe que não está centrada na real necessidade dos filhos, mas em sua própria imagem de boa mãe.

As sábias lições da mamãe-passarinho

               Quando eu estava no primeiro ano de faculdade, li sobre uma experiência feita com passarinhos pelo famoso etólogo austríaco Konrad Lorenz, cujos detalhes hoje me escapam, mas cujo sentido básico é muito interessante. Lorenz observou que um filhote de passarinho, ao quebrar a casca do ovo, considera mãe o primeiro objeto que se mexe ao seu lado. Ele, então, experimentou tornar-se mãe de alguns filhotes. Mal ele se aproximava, os passarinhos abriam o bico para serem alimentados. Um dia ele teve de se afastar repentinamente e, ao voltar, imaginou encontrar os passarinhos mortos de fome, já que não sabiam alimentar-se sem sua ajuda. Para sua surpresa, os filhotes estavam se virando muito bem – sozinhos!.

                Lorenz repetiu a experiência de vários modos e chegou a algumas conclusões. Se a mãe, por exemplo, não se afasta nunca – imagine uma mãe mecânica sempre ali, disponível – os filhotes nunca aprendem a comer sozinhos e, na idade adulta, separados da mãe, morrem de fome. A separação, portanto, é essencial para o amadurecimento. Só que há um tempo adequado para a mãe se afastar do filhote. Se é cedo demais, ele não aprende a se alimentar sozinho. Se a mãe é desleixada, alimenta mal os filhotes, submete-os a duras privações e eles também morrem de fome e não aprendem a comer sozinhos.

                Estas pesquisas parecem sugerir que a separação do filho é algo necessário, mas depende do momento, da hora e da qualidade de atenção que você dá quando está junto dele.

              Outro exemplo que nos vem dos pássaros, através dos estudos de Konrad Lorenz: o filhote tem um momento de prontidão para aprender a voar. Se passar esse momento, vai ser mais difícil. A mãe então não vacila. Se a hora chega e o filhote se recusa a sair do ninho, a mãe destrói o ninho. O bichinho cai e, na queda, em geral aprende a voar. Só que a mãe-passarinho está geneticamente programada para este momento. Com gente é mais complicado. Aí se vê de tudo. Pais que vivem paparicando o filho até aos trinta anos porque o coitadinho não sabe se cuidar. Pais que querem jogar logo o nenê na vida. É a real ligação amorosa com o filho – o estar centrado de que falava antes – que vai dar a nós, humanos, aquela genética lucidez de mãe-passarinho. Aí não tem receita.

              Em todo caso, estar sempre junto da criança pode transformar-se numa forma sutil de dominação. A criança nunca vai experimentar-se e descobrir seus próprios recursos, suas próprias forças. Cresce com a sensação de que sem a mãe ela não vive. A mãe passa a ser fonte de tudo e ela se sente sempre tão pequena diante de tanta generosidade. Mais tarde, como adulta, esta pessoa tende a estar sempre procurando quem a sustente. É, muitas vezes, capaz de muitas coisas, mas não acredita em si. E o pouco que faz atribui aos outros – ao marido, ao amigo, ao terapeuta. Também pode ter relações afetivas muito conflitivas. Aprendeu da mãe que amar é estar sempre grudado e renunciar a tudo o mais. Por isso, tem dificuldades de se entregar a uma relação amorosa com alguém ou com os próprios filhos. Ao aproximar-se do filho já está querendo, inconscientemente afastar-se para não se apagar como pessoa, como fez um dia sua santa mãe. Ao mesmo tempo, afastar-se para ela significa abandono. Quem ama fica sempre perto.

                A situação se complica. Entrega-se, tem medo de se apagar. Afasta-se, não é boa mãe. É o tipo de pessoa que tem culpa, não só por trabalhar fora, mas especialmente pelo tempo que dá a si própria, para seu lazer e seu crescimento. Diversão, só se for com o filho grudado. Resultado: muita raiva inconscientemente deste pestinha que lhe rouba a vida. Uma raiva que só pode ser inconsciente, porque imagina ter raiva do próprio filho. Que diria sua mãe, tão abnegada? Só que sua mãe também vivia com raiva inconsciente e bem que ela, mesmo criança, de muitas formas pagava por isso. À medida que ela trabalhar melhor esta sua relação com o modelo de mãe dentro dela, vai dar mais tempo sem culpa para si, para seu trabalho, seu crescimento. Ganha o filho, que vai ter, quem sabe em menos tempo de presença física, uma mãe mais amorosa e feliz.

          Quando uma mãe vai sair de casa para trabalhar absolutamente tranqüila e sossegada? Nunca. Certo conflito, insisto, sempre vai haver. E sossego absoluto é algo meio incompatível com a vida. Uma certa dose de angústia, de ansiedade faz sempre parte da busca de soluções. Penso que cada mãe deve ver com sinceridade o que tem para dar, o que quer e o que pode dar. E aí centrar-se nos filhos, de todo o coração, e assim perceber, com mais leveza, os diferentes momentos do desenvolvimento deles, suas necessidades reais. E, mesmo de longe, nunca renunciar a estar ligada, à administração atenta e sensível das horas em que não está em casa, sob pena de abandono.

Maria de Melo

Texto publicado na revista

 Psicologia e Comportamento,

 set/out/1984.

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