Como Canalizar a Raiva de Forma Positiva.
Maria de Melo, Psicóloga e Escritora ( A coragem de Crescer - Sonhos e História para Novos Caminhos. Editora Summus).
Para que serve a raiva?
A raiva tem uma função positiva. Até um certo ponto, ela ajuda. A raiva aciona a dopamina, um neurotransmissor importante para nossa química de ação. Temos muitas formas de acionar dopamina, a força de agir, para ficar mais inteiro e não desabar. A raiva pode ter esta função. Às vezes, você reage com raiva para não se deprimir, não desabar, não se desestruturar. Essa é uma função positiva. Mas sozinha, a raiva não dá conta do serviço, não é suficiente e é disfuncional, se não conseguirmos acionar outros recursos.
A humanidade de hoje tem sido chamada de modernidade líquida, conceito desenvolvido pelo sociólogo Zygmunt Bauman que trata da falta de solidez nas relações humanas. É uma condição em que a pessoa tem uma estrutura de personalidade frágil, sem consistência, tem imensa dificuldade de lidar com a frustração, um núcleo depressivo importante que provoca um constante sentimento de vazio existencial, de falta de tudo, de uma fome de tudo, que não passa nunca. Compensa isso com atitudes agressivas, explosivas, que na hora lhe dá uma sensação de força e superioridade sobre os outros. Não consegue segurar a onda, torna-se destrutiva, chuta e bate de qualquer jeito, sem objetividade, sem calma, sem consciência. Portanto, temos sido uma humanidade narcisista, sem empatia, sem afetividade. A reatividade destrutiva e narcísica promove uma aceleração, chama uma química de dopamina, de um fazer vazio de significado, sem afetividade, sem serotonina, que é o neurotransmissor do prazer, do peito cheio de amor, de um adulto realmente de pé sobre suas próprias pernas, um tórax bem colocado, capaz de abraçar o outro, enxergar o outro, de amar.
O que difere as pessoas que conseguem lidar bem com a raiva, daquelas que não conseguem? Como a raiva age em nosso organismo? A raiva costuma se autoalimentar?
Na raiva você estica o pescoço, tenta ficar maior que o outro, acima dele. Se você culpa o outro, a probabilidade de você conseguir o que deseja dele, de receber compreensão e ajuda, diminui bastante, porque coloca o outro na defensiva. Raiva provoca raiva. Ou provoca medo, o qual, por sua vez, provoca raiva. De qualquer modo, a relação se deteriora, comprometendo os resultados futuros... Mas a raiva se retroalimenta, gera um tipo viciante de dopamina e a uma sensação de que se está fazendo algo, agindo, chutando, batendo. Apesar da deterioração das relações em consequência desse estilo de ação sem serotonina, sem prazer e amorosidade, corre-se o risco de que essa pessoa se refugie neste tipo de química sem equilíbrio, em busca dessa dopamina, daquela sensação de estar rápida, acelerada, de estar por cima, nem que seja por um breve momento - porque, depois, a vida cobra!
Numa metáfora de um jogo de futebol, trata-se aqui de um jogador que receba a bola e a chute de volta de qualquer jeito, que não tenha estrutura e calma para administrar as situações e só reage, chutando para fora, torto, sem consciência; essa pessoa não é capaz de agir verdadeiramente, só consegue reagir e reagir mal. Não tem estrutura para lidar com os estresses da vida, sustentar a situação, aguentar a pressão e ter capacidade (resiliência) para lidar e se dar tempo interno para tomar consciência da situação como um todo, para obter um olhar mais amplo. Neste quadro de falta de estrutura psicológica, emocional, a raiva é um recurso pobre, se ficar apenas por aí. Se a pessoa sustentasse a frustração o suficiente para acionar recursos nela mesma, conseguindo então escolher a melhor opção de ação, seria melhor. A reação raivosa, a que culpa sempre os outros, aquilo que está fora, desgasta o organismo e as relações, gera um círculo vicioso de perda de energia, criando caos para si mesma e para as situações. É preciso parar, reavaliar, reorganizar.
A pandemia, paradoxalmente, pode até ajudar nisso. Ela está nos levando a um luto bem pesado. A vida não tem um Serviço de Atendimento ao Cliente que atenda a reclamações como a de que a pandemia não estava no script. É ilusória a alternativa de arrumar culpados, pois eleger um culpado não vai resolver o problema de fundo. O corona não é nada sensível a explosões. Agora, na pandemia, tudo está zerando: tempo zero. Hora de recomeçar, de sair do egoísmo narcísico, de ter empatia, de enxergar a situação como um todo e, a partir disso, agir de uma maneira que leva em conta a si mesmo, o outro e a situação. Agir é muito diferente de reagir. No agir a ação não depende do que o outro fez ou deixou de fazer, necessariamente. Depende principalmente de você mesmo, de suas escolhas, de como você decide ser e agir na vida. Tem que morrer um estilo de vida, um jeito de ser. O caos pode ser também uma chance de você se reorganizar. Assim sendo, você, colérico, tem agora uma enorme chance de ir adiante e evoluir, se encontrar consigo mesmo de um outro jeito, refazer relações, ressignificar você mesmo e os outros. A única coisa que você pode controlar é a sua mente, seu jeito de ser, reorganizar isso. A compaixão pode ter agora um lugar e isto vai criar o campo para você ir além da raiva, da reação colérica. Compaixão por você mesmo, suas vulnerabilidades, e a dos outros. Desse modo, neste caminho, a gente encontra a vulnerabilidade como possibilidade, como nossa maior força pois nos torna humanos, humildes pois irmãos de todos, da vida.
O antídoto da raiva é a paciência. Se você conseguir ver que a culpa não é do outro ou da vida, mas sim de suas expectativas ilusórias e métodos inadequados, então você começa a ter condições de se reorganizar e se recompor, para se tornar uma pessoa mais estruturada e começar a falar com o outro de uma forma mais humana, menos arrogante, com mais peito, mais tórax e menos pescoço. A postura fica diferente, mais eficaz, sendo fruto de uma estrutura emocional mais equilibrada, resultante de uma consciência de que a vida sempre traz um punhado de problemas, mas que chutar de qualquer jeito e culpar o outro ou as situações não resolve nada.
A raiva explosiva, azeda, violenta, é uma prima precária da indignação. O indignado é, como o estou definindo aqui, é um ser humano que tem consistência de caráter. Esta pessoa tem seu tempo interno, sustenta um ritmo sem aceleração gerada pelo medo, pelo pânico. A raiva que leva a uma indignação, a um desejo de justiça, a uma busca pela empatia, a um cuidar das desigualdades, não é disfuncional. Se a pessoa tiver tórax, peito para sustentar suas emoções, dar-lhes tempo e consciência, isto pode trazer grandes benefícios. A indignação, como a estou descrevendo, levará a um agir consistente e verdadeiramente potente. Terá paciência, administrará frustrações, terá empatia. Não será nem um amor frouxo, nem uma reação explosiva. Essa filosofia é o combustível para uma ação realmente potente, que levará a um reequilíbrio da vida, não somente a da pessoa, mas da vida maior. Nada a ver com agredir e culpar o quem estiver mais perto ou mais vulnerável. O segredo é a pessoa conseguir se organizar, acionar outros recursos para uma ação construtiva, que não passa do ponto; que é focada e organizada, não é louca
É possível retomar o controle durante um momento de raiva? (Aqui falo de coisas cotidianas, como acabar o cartucho da impressora quando é necessário imprimir um trabalho importante ou se irritar com a bagunça do par ou dos filhos.) Por que algumas pessoas têm atitudes violentas na hora da raiva? Exemplos: atirar coisas longe, jogar algo no chão, xingar com palavras de baixo calão, esmurrar a parede ou o computador...
Retomar o controle durante um acesso de raiva é possível e necessário. Temos que mudar de traços de caráter. É preciso ressignificar a vida e assumir, definitivamente, que algumas coisas não aconteceram como deveriam, ou como você gostaria... Talvez tenha faltado, por exemplo, a mãe boa que te enxergasse com um olhar firme e profundo. Tivemos o que tivemos, o que puderam nos proporcionar. Nada de culpar as pessoas! Ao contrário: é a hora da gratidão infinita pelo que o outro conseguiu fazer. Hora de buscar dentro de você mesmo, bem como nas relações que existem hoje, aquela aceitação amorosa e sábia do que se tem, hora de colecionar o que se tem de bom. Aquilo que você coleta, acaba sendo aquilo de que você dispõe no final do dia, então se for amargor e azedume, é o que terás, se não mudar de rumo.
Mais do que uma mãe que fique te mimando, o momento é de procurar em si mesmo, uma figura mais paterna, acolhedora, protetora, mas que também te põe limites, amorosa e firme ao mesmo tempo. Enxergue seus defeitos, suas limitações. Veja quando você está sendo folgado e retome. Acolha sua tristeza, sua frustração, sua depressão. Se você te abraça assim, a tristeza poderá ser o caminho de se retorno ao equilíbrio e ao encontro de sua força interior, seu peito de coragem. Não fique só na raiva e em culpar o outro. Permita-se chorar, também! Se dê este tempo, este acolhimento e depois levante, sacuda a poeira e comece, com calma, sem correria caótica e insustentável, dê a volta por cima. Isto é, acesse um Eu maior, mais consciente, um olhar mais amplo.
Saia, finalmente de seu umbigo! Quem vive no próprio umbigo, é ainda um feto, procurando um alimento que chegue fácil e perfeito. Aprenda agora a mastigar, a crescer, a busca sua nutrição. Mas com um olhar de carinho, um sorriso de aceitação e inclusão dentro do teu peito, um olhar firme, inteiro, amoroso, para com você mesmo e para com os outros. Isto te dará serotonina, prazer, alegria de viver. Te dará afetividade. Então você não irá precisar mais tanto de acelerar, gritar, arrancar a qualquer custo alguma dopamina de seu sistema e, com a serotonina, terá um tórax, seu pescoço encontrará o lugar dele, o seu lugar no mundo, sua voz verdadeira. Então a dopamina virá equilibrada com a serotonina, o prazer de andar para a vida, apesar da vida ser tão dura. A vida é dura, mas se dentro há afetividade, acolhimento, firmeza, a vida vale a pena, apesar de tudo! Crise é a mãe da criatividade, disse Einstein. Agora é a hora zero, vamos recomeçar!?
É possível transformar essa energia colérica em algo positivo? Como?
A raiva explosiva reflete arrogância. A gente estica o pescoço, fica acima do outro, parecemos estar ganhando. No mais profundo, na verdade, a gente está mesmo é com medo de estar por baixo, está se sentindo fraco e por isto, apela. O explosivo já perdeu a briga! E dá sim para mudar este jogo. E este é o grande desafio deste momento pandemônico! Como? Antes de mais nada, tomando consciência deste seu jeito. Isto é o mais difícil. Exige coragem. Exige força. Exige esperança em si mesmo. Em resumo, exige humildade, que é o produto mais valioso e mais caro da vida humana.
A humildade na verdade, é a recuperação funcional da nossa coluna vertebral para que tenhamos flexibilidade suficiente para nos curvarmos quando necessário, como na parábola da Bíblia que nos aconselha a sermos como a cana que se curva quando o vento é muito forte e por isso mesmo não se quebra como o orgulhoso carvalho que fica rígido e teimoso encarando o vendaval. Às vezes, é preciso poder curvar-se sobre si mesmo, buscar o calor dentro de si, não perder energia só na defensiva, mas procurar seu próprio lugar, com o pescoço colocado no lugar certo, sem precisar estar acima dos outros.
Se você está conseguindo enxergar sua própria arrogância e suas reações coléricas, que ótimo! Começou a transformação. A atitude explosiva, grossa, provoca no outro da relação raiva ou medo e com isso gera alta chance de você não conseguir o amor, a compreensão, a boa vontade, a atenção, a colaboração que deseja. Não é, portanto, uma resposta funcional à vida. Não é inteligente, pois não intercepta vitalidade. Leva sua vida e suas relações a se desvitalizarem, ou à entropia, na linguagem da física quântica.
Qual a função positiva da raiva?- Manter a raiva sob controle é questão de treino?- Quais atividades ajudam no controle da raiva? Exemplos: meditação, yoga, banho morno, correr.
Acionar a raiva diante de uma frustação, em um primeiro momento, é até sinal de vitalidade. Ao darmos vazão à raiva, estamos tentando, em um nível mais profundo, não desabar diante da situação, não perder o tórax, a postura adulta bípede. Estamos tentando não vergar, não deprimir, não sermos capturados pela criança interior ferida e frágil que não aguenta sustentar a frustação. Na raiva a gente explode numa expiração de desabafo e isso parece bom, mas a vida exige mais do que desabafo.
Então a gente inspira de novo, enche o peito. Talvez aí surja a possibilidade do luxo de inspirados, sentirmos a dor da vida e, quem sabe, também chorar, num desabafo. Não há nenhum mal no desabafo que acontece sem terceirizar a culpa, que permite irmos para dentro para a gente se recolher, esperar e buscar os recursos próprios da vida, das coisas boas vividas, das relações que existiram, que existem e que existirão, enfim, buscar de novo a capacidade de amar. Assim, o perdão então poderá, finalmente, equilibrar de novo a respiração. Pois precisamos de muito mais do que a raiva para nos erguermos como seres humanos emocionalmente inteligentes. Sentir a tristeza, acolher a tristeza pela frustração que sofremos, é aceitar a realidade. Respirar, isto é, entrar em contato com a energia que a própria vida nos oferece, entrar em contato com o planeta, o cosmos, o ar como fonte de nutrição, a mãe-vida; o corpo, que é capaz de sentir, de ter emoções, de ter relações de amor e cuidado, de cuidar.
Reflexão, conseguir se recolher, esporte, rezar, meditar, tudo isto ajuda muito no desenvolvimento do equilíbrio emocional. Tudo que aciona a consciência é importante, pois consciência é energia, é horizonte mais amplo, é possibilidades.
Correr, ajuda. Você consegue dopamina de uma outra forma além da raiva e suas explosões. Melhora também sua neuromuscularidade e lhe dá mais estrutura e capacidade de administrar suas emoções. Não somente correr. Que tal andar, com calma, tomando consciência de seu momento presente? Ali está você, agora, com saúde, vivo, entre um futuro que ainda não existe e o passado, que já não existe. Refugie-se no seu ‘agora’ e desfrute de seu “estar vivo”!
Meditar ajuda. Se você, como tantos por aí, tem um núcleo depressivo escondido sob a aparência de orgulho e agressividade, então meditar e ficar quieto consigo mesmo, entrando em contato com seu núcleo interior, talvez contatando uma plenitude, em você mesmo, que você pode chamar de Deus, ou sua Alma, certamente vai ajudar a ter esperança de que existe outro caminho além de reagir, chutar e espernear como sua criança interior costuma fazer! Talvez na meditação você descubra a diferença entre estar sozinho e estar consigo mesmo. Talvez então você possa deixar vir uma tristeza que é boa, pois é um encontro e um abraço, e um abraço que te apoia sem te prender, sem te levar para baixo. Ela é um verdadeiro caminho para uma vida interior, muda sua vibração, as ondas cerebrais, a respiração. A tristeza não é depressão, é um caminho para transmutar a depressão. É importante a gente descobrir este lugar, essa “casa” dentro da gente, para onde podemos voltar sempre que lá fora estiver frio e a gente estiver perdendo energia. Retorne, fique neste tempo sem tempo, redescubra seu ritmo e verá que esta senda te ajuda a encontrar o outro, a afetividade, a relação com as pessoas, a relação como um lugar de trocas, de dar e receber, de enxergar verdadeiramente o outro e ser visto verdadeiramente pelo outro.
O explosivo está com uma estrutura interna frágil, sem base de sustentação de si mesmo. Por isso, precisa cuidar de si, descobrir a direção interior e o tempo interior. Dessa maneira, ele terá condições de agir, em uma ação potente e não um mero reagir às coisas externas, à ação dos outros ou às frustrações da vida. Não podemos confundir violência com potência! Quando somos violentos, estamos vivendo nossa impotência. Violência e onipotência são sinais gritantes de impotência!
Quando uma frustração ameaça nos desestruturar e uma explosão de raiva vier nos acudir, é melhor receber a dopamina que foi produzida, mas também se organizar para segurar sua ação. Respire nisto e se administre. Atacar o outro, a coisa, é uma má escolha! Respirar nisto é voltar-se para dentro, se olhar, se reconhecer, se cuidar. Na explosão, você perde até a razão que de fato possa ter na situação. Vira o louco da história e não consegue agir de uma forma realmente eficiente e inteligente para te proteger.
Retome seu movimento interior. É hora de você encarar certas coisas que pegam a criança frágil que há em você. Para você proteger esta sua parte vulnerável, você erroneamente chama aquele ogro doido que há dentro de si, com um tacape na mão para um resolver pronto. Mas a sensação de que isso foi potente é falsa. Quando você explode, está sendo impotente e não potente. Olhe para o fundo do baú: você está triste, talvez deprimido e tem é que curar certas coisas lá da infância, onde você ficou desamparado diante de adultos que não estavam te vendo, te enxergando verdadeiramente. Te enxergue agora! É a hora!
Temos que encontrar a força dentro da gente para assumirmos a responsabilidade da cura dessa nossa criança ferida. Só assim nos tornaremos adultos suficientemente funcionais para não ficarmos controlados pela raiva. É hora de termos consciência de nosso funcionamento, da função da raiva e do medo, e buscarmos recursos internos e externos, relações afetivas funcionais. E se, possível, acionar sua fonte de energia mais profunda, sua alma, sua intuição, este campo mais amplo, sua conexão com o todo maior, as raízes de seu sentimento de pertencer, de ter seu lugar, de ser filho de Deus, herdeiro da vida!
Maria de Melo é psicóloga, escritora
de "A Coragem de Crescer – Sonhos e Histórias para Novos Caminhos" (Editora Summus)
presidente do NuPsi - Núcleo de Psicologia Integrada e
diretora do IBAR - Instituto Brasileiro de Análise Reichiana.
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