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Os muitos casamentos possíveis dentro da mesma união

O que unia um casal no começo não é mesmo que vai emocioná-lo 20 anos depois. E o medo de perder, garantir na marra, não funciona.  Ou os dois evoluem juntos ou as razões de  permanência passam a não ser muito saudáveis.

        Um bom casamento. Está aí uma coisa difícil de se definir assim genericamente. No casamento, como em tudo, cada um tem seu caminho. O que para mim é um  bom casamento, pode ser uma experiência cheia de tédio ou ameaças para outro. Bom casamento depende muito dos desejos, possibilidades e necessidades de cada um. E tudo isso varia bastante segundo a idade, o momento de vida, as condições emocionais e até econômicas.

        Duas pessoas se casam, por exemplo, aos 20 anos. Tudo tão certinho, tão conforme sonharam. São as tais caras-metades. Onde um está, lá está o outro. Dois num só corpo, os mesmos projetos em tudo. E fidelidade absoluta. E muito controle mútuo, claro.

        Aí, as coisas vão mudando. Aos 20 anos, é muita a insegurança em relação à vida profissional, afetiva, sexual. Aos poucos eles passam a conhecer o sucesso profissional, adquirem maior segurança, cada um começa a acreditar mais em si mesmo. Cada um quer se conhecer mais. E, neste autoconhecer-se, a presença constante do outro chega a atrapalhar. Aos 20 anos, podem prevalecer o desejo e a necessidade de um par, de sentir-se amado e amparado, de ter filhos. Aos 30, aos 40, desejos e necessidades talvez sejam outros. Pode não ser tão essencial a segurança de um relacionamento certo. Ou, só isso já não basta. A pessoa passa a desejar um parceiro que seja também um companheiro, na cama e na vida. Por isso, muitas vezes, o parceiro que atendia às necessidades dos 20 anos já não as atende em outra idade. E surge a crise.

       O que era adequado passa a atrapalhar. Um dia destes, alguém me disse: “Casei com a mulher certa. Boa esposa, boa mãe, boa dona-de-casa. Ela continua certa. Mas eu mudei. A vida mudou. Hoje, quero uma companheira”.

       Esse depoimento coloca uma questão importante para definir um bom casamento numa sociedade de rápidas e intensas transformações. Os desejos, as necessidades, as possibilidades vão mudando. Mas ninguém muda por achar bonito. Muda-se porque a realidade muda, obrigando-nos a acompanhá-la. As transformações sociais acontecem sem pedir licença. Ante o impacto, a gente reage como pode. Acontece que as pessoas são mais flexíveis que as instituições. Seria tão mais fácil se as instituições, docilmente, fossem mudando na medida em que nós mudamos! Mas, com muita freqüência, o indivíduo tem que trilhar sozinho sua estrada, com todos os riscos e solidão que isso implica. É mais fácil mudar pessoalmente do que, por exemplo, mudar o modelo institucional do casamento.

         O saldo positivo disso é que se trata de uma crise capaz de servir ao nosso crescimento pessoal. Uma oportunidade muito rica de se rever, de discriminar o essencial dentro da multiplicidade de transformações à nossa volta e em nós mesmos.

       Para isso, é preciso a coragem de se rever mesmo, de refazer valores, de mudar de forma construtiva. Principalmente, de renunciar a traços de personalidade que serviam a condições anteriores, e que no momento só atrapalham.

        Para sobreviver em determinado período da vida uma pessoa teve, por exemplo, que se tornar atenta, controladora, dura. Tinha que empurrar a vida. Não lhe era permitido fluir docemente com ela. Graças a esse endurecimento, foi capaz de lidar com aquela família, ou com aquelas condições sociais. Mas, a vida mudou e essa postura começa a atrapalhar. Se a guerra passou, para que manter a armadura? Se o matagal foi vencido, por que a foice na mão? No casamento é a mesma coisa. Durante um tempo de imaturidade, marido e mulher brincaram de protetor e protegida. Ela se fazia de tola, de infantil, ele era o forte, o segurador de barras. De repente, um consegue parar sobre as pernas. A brincadeira de princesa frágil e príncipe salvador começa a cansar.

Fidelidade não é a amarrar o

outro com uma corda  grossa

       Receita de casamento feliz ninguém pode dar. Mas é possível apontar alguns aspectos importantes a considerar num em qualquer união.

       Para começar, o casamento simbiótico, baseado no sonho de união total entre parceiros. Um casamento onde cada um fica sem espaço para sua individualidade, de tal forma grudado no outro que se torna difícil definir o perfil de cada um. O tipo de casamento que preenche as necessidades de segurança pessoal e proteção. Próprio de quem está com medo de se responsabilizar pela própria vida, de parar nos próprios pés. De quem busca um colo, um oásis onde esconder seu medo da vida.

       Quem não confia em si tem pânico de ser abandonado. Não pode sequer encarar o fato de que ir embora ou ficar é um direito humano, um direito de quem tem pernas. Quem não tem pernas para se mover por conta própria é que tenta imobilizar o companheiro para garantir sua presença. E passa a alimentar sentimentos de medo, raiva, inveja.

     Como um momento de vida, ainda vá lá um casamento desse tipo. Quando duas pessoas são muito jovens, por exemplo. Já como proposta a longo prazo, significa nunca se tornar adulto, ser incapaz de encarar a vida de frente , com todos seus jogos, riscos, aventuras e alegrias.

    Sobre as próprias pernas, seguro de si, pode-se distinguir o que é abandono, rejeição, dos simples exercícios de liberdade. Nem sempre afastamentos significam abandono ou rejeição. Às vezes, o companheiro pretende apenas mais espaço para ficar, ou para ir em busca de seus caminhos. Mas quem é muito inseguro interpreta qualquer afastamento como abandono.

      Uma relação simbiótica, de união absoluta,  não oferece condições para que floresçam sentimentos bons como ternura, amor, companheirismo. Ela é boa, pelo contrário, para propiciar um ninho de ressentimentos, mágoas, inveja. E muita cobrança. Cobra-se tudo. Um não tem direito a nada fora do outro. A obrigação predomina. A obrigação de amar, de satisfazer. Aí entra a questão da fidelidade.

      Fidelidade, como indissolubilidade, não se jura. Constrói-se no dia-a-dia, com muito esforço e maturidade. Amarrar o companheiro com corda grossa pode até ser um meio eficaz de garantir fidelidade. Mas ter ao lado um companheiro fiel por juramento (e infeliz, e frustrado) não traz alegria a ninguém. Quando se é livre para ir ou ficar, o ficar tem outra qualidade.

      Fidelidade forçada nunca segurou ninguém. Quem exige fidelidade dessa forma fica com a imagem de pessoa controladora. Na prática, com muito menos condições de concorrer com os rivais. A outra (ou o outro) sempre vão parecer mais fascinantes do que aquela chata (ou aquele chato) lá em casa.

    Deixando as coisas correr mais espontâneas, com mais respeito pela liberdade individual, há risco de perder o outro? Há. Mas há também a possibilidade de ganhá-lo numa boa. Controle rijo, fidelidade muito cobrada é a maneira mais arriscada de competir.

     Impedir que o outro cresça por medo de perdê-lo é a maneira mais infeliz de perdê-lo mesmo. Quem amadurece torna-se mais independente, ganha condições de optar. E vai embora ou fica. O aleijado, o que não tem pernas, esse, obrigatoriamente, fica.

       A situação pode ser bem ilustrada com uma imagem. Duas pessoas estão andando pelo mesmo caminho. De repente, percebem que querem seguir direções opostas. Às vezes, pode haver um acordo. Outras vezes, o acordo não é possível. Às vezes, um parceiro cresce, facilitando e estimulando o crescimento do outro.  Que tanto pode crescer e ficar junto quanto crescer e tomar direção diferente.

     Qualquer que seja o caso, certa flexibilidade na relação é saudável na medida em que permite aos dois o crescimento pessoal. O importante é que cada um se sinta seguro para permitir as mudanças e o crescimento do companheiro.

      Ao marido cabe o direito de desejar a esposa dos seus sonhos, e ninguém tem nada com isso. Mas a esposa também tem direito de direcionar sua vida no rumo de seu crescimento. Aí está um rico espaço para diálogos e acordos. Se isso não for possível, ficar naquela situação pode se tornar sofrido, desgastante, até o ponto em que não há mais escolha: ou cada um muda, ou se perde dentro da relação. Entre salvar a relação e salvar a si próprio, melhor deixar cair a relação. Mas cabe a cada um julgar o ponto em que ainda vale a pena lutar por uma relação e o ponto em que ela já começa a significar morte emocional.

É muito grudado que ninguém

está seguro

       Nos últimos anos, a mulher amadureceu para a independência bem mais do que o homem. Despreparado para essa nova mulher, o homem se mostra amedrontado, confuso, sem saber direito qual é sua identidade como homem. Com menos experiência em termos de sentimentos, de afetividade, ele procura cada vez mais a terapia para se conhecer melhor. E não é para menos, já que, desde pequeno, passou a vida olhando para o mundo exterior, aprendendo como funcionava tudo fora dele, porque disso dependia seu sucesso. Enquanto isso, a mulher, com grande prática de olhar para dentro, foi se tornando ágil no mundo da afetividade – o único que lhe era permitido. Por isso, em vez de ficar brigando, homem e mulher têm muito a aprender um com o outro.

       O que não se pode, numa hora dessas, é ficar sozinho na floresta. Sei de uma mulher que num período de muita luta pela sua afirmação teve um sonho muito significativo. Ela estava na floresta e precisava matar um tigre. Matar para defender seu lugar naquela selva. Depois de muito se preparar, na hora foi com tudo, e venceu o tigre. Mas, ao examinar sua vitória, viu que o tigre não passava de um montinho assustado de carne e pelos entre as ervas. E ela continuou a andar pela floresta e começou a sentir falta do tigre, e se achou só. Aí voltou, decidiu rever o tigre, conversar.

     Muito significativo para a relação homem-mulher, esse sonho mostra como não é preciso destruir o outro para encontrar seu lugar, como certas vitórias levam apenas à solidão, como discutir trocas  é muito mais fértil do que eliminar o outro. Só que a troca tem que ser em condições de igualdade, sem que um esteja por cima. Porque estar sozinho na floresta não é bom.

     A relação também se torna sufocante quando os envolvidos não têm capacidade de se verem mesmo como são. Costuma ser muito mais fácil projetar nos outros nossos conflitos do que encará-los. Mais fácil é culpar o outro do que assumir a responsabilidade pela própria vida. É mais comum ver uma pessoa se queixando de que o companheiro não a deixa ser independente do que vê-la encarando seu medo enorme da independência e suas consequências. É mais fácil ficar esperando que o outro nos ame, nos entenda, nos satisfaça, do que saber de nossas falhas, encarar nossos medos, fraquezas, mesquinharias, incapacidade de amar. Difícil é encarar que viver como adulto significa ser o único responsável por aquilo que se faz na vida. Culpar os outros é ficar esperando, na impotência, que façam algo, que mudem, que se transformem para nos atender – coisa que só dá certo com criança pequena, bem pequena mesmo. Quando adultos, nossas transformações dependem unicamente de nós.

       Em geral, casamento mais dificulta que estimula este assumir-se,  já que no mais das vezes provoca uma união simbiótica, onde um como que se perde no outro. Em geral, as pessoas têm medo da independência. Ficar grudadinho dá uma sensação de segurança. Uma falsa segurança, já que os ventos que levam um, levam dois. Grudados, é mais difícil os dois se segurarem na hora do perigo. Na crise, social ou pessoal, cada um conta mesmo é com suas pernas. Quando a crise aperta, o próprio instinto de sobrevivência nos leva a largar o que não dá para carregar no colo.

     A vivência de um casamento sufocante tende a deixar as pessoas tão machucadas, tão traumatizadas, que ao sair dele tendem a se refugiar num individualismo estéril, incapazes de entrega. Como se não conseguissem proteger-se dentro do amor, acabam fechando e enrijecendo o coração. Esse é outro motivo pelo qual é tão importante não se perder como pessoa dentro da relação. No casamento tradicional, importante era a relação, eixo de tudo. Na verdade, o importante é que o eixo permaneça na pessoa. A primeira fidelidade deve ser consigo mesmo. O perigo começa a se delinear quando, para ajeitar as coisas, um começa a ser infiel a sua verdade, a seu jeito de ser.

Quando a traição de si mesmo

vira a base de um casamento.

    É a partir de si mesmo que se deve integrar o que vem de fora, o casamento e suas leis. Isso não quer dizer egoísmo, indiferença para com o outro; não significa não renunciar, não ceder. Mas a renúncia, se existe, tem que partir daquilo que a pessoa, verdadeiramente, acha. Assim, levará em conta os ângulos alheios, mas sem perder de vista a coerência consigo mesma. A responsabilidade pela relação brotará de si mesma e não de leis externas, de expectativas sociais. E o próprio cuidado pelo outro fluirá naturalmente. Quem não cuida daquilo de que gosta?

      Um bom casamento não pode nascer da traição de si mesmo, não pode vingar num terreno onde desejos e necessidades de ambos não são expressos de forma adulta e responsável. Num bom casamento, na hora em que um busca sinceramente seu espaço, não vê o companheiro como carcereiro, nem sente o casamento como um amontoado de imposições odiosas. Na medida em que o companheiro não atrapalha, pode ser valorizado como alguém com quem se tem muitas coisas boas a curtir. E a partir dessas coisas boas pode-se descobrir que se gosta mais ainda dele. De uma barreira, alguém pode gostar?

      Tudo isso quer dizer que, ao lutar pelo seu espaço no casamento, você pode assustar seu parceiro. Pode até perdê-lo. E daí? Há um ponto na vida em que o importante é a qualidade daquilo que se mantém. Manter qualquer coisa a qualquer preço, sem qualidade, vale a pena? Não será preferível perder a manter algo de baixa qualidade?

    Para viver com essa coragem, você precisa apenas ser capaz de não precisar desesperadamente de uma relação. Você tem apenas que ser capaz de sobreviver como indivíduo.

Texto publicado na

 Viver-Revista de Psicologia,

Maria de Melo

Maio 1985

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