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A experiência de ser psicoterapeuta 


Costumo comparar o processo terapêutico a um safári na África. Como terapeuta, sou a guia contratada pelo cliente. Aprendo muito em cada viagem. É uma floresta infinita e surpreendente. Participo também da aventura de meu cliente, inevitavelmente. Apenas temos papéis diferentes. 

 

A viagem é dele, o trajeto é dele. Eu o acompanho, colocando a seu serviço meus conhecimentos a respeito da floresta, seus caminhos e seus habitantes.

 

Há momentos em que a briga é só dele. Eu o aguardo como Ariadne à porta do Labirinto. No mito, Ariadne havia dado a Teseu, o herói, a sua colaboração (o fio que lhe permitiria marcar o caminho de volta) e depois o esperou lá fora. Lá dentro, naquele momento, para fazer aquele serviço, só cabia ele. Ele era ali o herói e deveria matar sozinho o Minotauro. Assim é. Há momentos em que o serviço é solitário. E, no entanto, embora sutil, era essencial a ajuda de Ariadne e sua presença lá fora, a aguardá-lo.

 

Em outros momentos, a ajuda de um guia experiente se faz mais evidente. Na floresta do seu inconsciente, em que meu cliente penetra ao longo do seu processo terapêutico, pode acontecer que de repente, um tigre inesperado pule em cima dele e o pegue desprevenido. Aí, mais acostumada que sou com os tigres do inconsciente, entro na briga e ajudo no que puder.

 

Às vezes, inclusive, saio arranhada: ossos do ofício.

 

Considero um privilégio participar como guia desta aventura. O momento de uma psicoterapia, o dispor-se a entrar na floresta densa e rica que é nosso eu mais profundo, é muito especial: é um ato de coragem que abre possibilidades e espaços novos, potencializando descobertas sobre si mesmo e sobre o ser humano.

A hora da verdade. Momento sagrado.

O homem buscando conhecer sua humanidade, sua vulnerabilidade e suas possibilidades.

 

Esta hora, da verdade, tem a força de saber da própria fraqueza; perder a onipotência para buscar mais potência e mais alegria. Na hora do “vamos ver” fica evidente que o forte não é que não tem medo. Medo é inevitável, numa certa medida. Nesta medida, medo é prudência, é ter consciência do perigo e estar atento para lidar com ele. Quem nega seu medo, perde energia boa, enterra-a no sufoco de ‘bancar’ o corajoso. A coragem é humilde porque é consciente. Sabe do perigo, avalia-o, prepara-se, e vai ao seu encontro para evoluir, para resolver o problema. Não vai para provar que é o ‘bom’. Vai para servir à própria alma, para encontrar o caminho, a saída, a liberdade.

 

E sempre que salvamos a nós mesmos, abrimos um caminho, ou pelo menos pavimentamos um caminho para os outros seres humanos, que, num nível mais profundo, caminham numa mesma direção.

 

Neste sentido, nos tornamos herói, isto é, aquele que vai enfrentar o perigo, resolver o problema, e trazer a paz para seu grupo. Uma pessoa mais madura, mais equilibrada, dá o tom da harmonia por onde passa!

 

 

Portanto, é sempre bom lembrar que coragem é aprender a enfrentar o medo. Cada um deles, um a um. Conhecê-los e respeitá-los.

 

Aceitá-los. E ir além. Ultrapassar.

 

Deixando a civilização conhecida e adentrando a floresta do seu inconsciente, a pessoa  arrisca perder-se para encontrar-se. Nesta aventura da busca de Sí mesmo, uma companhia experiente, o terapeuta, pode fazer muita diferença.

 

De minha parte, participar disto, ser a testemunha deste momento de coragem, como o sou como psicoterapeuta, é privilégio. 

 

Existem momentos especialmente ricos: às vezes, o bicho que meu cliente está enfrentando já é bem meu conhecido. Neste caso, experiencio o “ser companhia” de um outro ser humano. Aprender a ser boa companhia para alguém num momento difícil tem sido, talvez, um dos melhores frutos deste meu ofício. Tranquilizar, dar nome aos bois para começar a afastar o medo, dar indicações de que o caminho está correto... Avisar sobre um desvio perigoso...

 

Pode acontecer também que surja pelo caminho, um bicho com que eu não lide bem ou conheça pouco. Mesmo um bom guia não sabe lidar bem com tudo da floresta... Mas o fato de eu já estar tão familiarizada com a floresta significa, inclusive, saber que ela é inesgotável e sempre cheia de surpresas. E isto me dá uma certa calma, uma confiança a mais do que o iniciante.

Desta forma, vou desenvolvendo paciência, tolerância e ternura diante da dor, da fragilidade e da limitação humana. O que muito me ajuda, inclusive, a curar-me de minhas vaidades e de minhas próprias feridas.

A defesa narcisa, nossa arrogância, nos impele a sermos implacáveis diante da limitação humana, a fim de que possamos nos enganar de que nós, meu ego maravilhoso, é muito mais do que ‘aquilo’, aquela ‘fraqueza’ . E assim seguramos a “imagem” idealizada de nós mesmos. Mas, nos momentos cruciais da aventura terapêutica, a gente espera acabar aprendendo a “largar a mão de besteiras” (narcisismo, vaidade, arrogância), para salvar a própria pele. Diante do tigre enraivecido, é difícil “contar prosa”. Eu e meu cliente de tal safári, nos conhecemos cada vez mais intimamente. Tornamo-nos companheiros de vida, a relação terapêutica torna-se uma conexão de pessoa com pessoa. Quanto o safári terminar, a gente se separa. Mas cada um sabe, no coração, que algo ali fica para sempre. Algo que já não precisa de presença física, algo que fica na alma. Vamos descobrindo, a cada passo, que somos, num nível mais profundo, seres humanos, antes de mais nada. E ali, somos irmãos!

 

Já no meio da viagem, já conhecemos nossos mútuos pontos fracos e fortes.

A verdade de nós mesmos vai surgindo e com isto a chance de nos transformarmos.

 

Quando, num recanto insuspeitado, surge de repente um bicho que eu também não conheço ou não reconheço, a experiência se torna especialmente rica para mim. É uma chance de me descobrir junto com o cliente. Se tudo correr bem, nós dois nos aliamos para aprender a lidar com o tal bicho. É um companheirismo diferente do anterior (quando eu já conhecia bem o problema). O risco, neste caso, é que eu fique no meu susto e no meu medo e me atrapalhe e me acovarde. Neste caso, podemos começar a nos opor um ao outro, culpando-nos mutuamente (transferência e contratransferência). Se alguém não tiver juízo (ou eu ou ele), nos machucamos nesta. Supostamente eu é que deveria ter este juízo e conseguir sair do impasse. Mas, se por acaso for ele o ajuizado, fico grata e aceito a ajuda. 

Este é o desafio, nestas horas.

 

Quando temos medo e somos pequenos, podemos trapacear no jogo sem perceber. Isto diminui as chances de sucesso da viagem, de chegar ao coração da floresta e ao coração das pessoas... Rodamos em círculos, sem sair do lugar. Nos desgastamos e nos metemos em apuros. O terapeuta-guia precisa saber mostrar ao viajante onde e como ele (viajante) trapaceou e os erros que cometeu. Mas precisa também reconhecer seus próprios erros e trapaças, se houver. E se retomar. O terapeuta-guia é quem tem condição de maior mobilidade para sair das enrascadas. Para isto é preciso que ele se conheça bastante bem e esteja muito junto consigo mesmo, muito atento a si mesmo para poder se reconhecer e se retomar. 

 

Conhecer a floresta é conhecer a si mesmo. Saber quando algo o tocou e onde e como o tocou. Depois que a viagem começa, eu e meu cliente estamos, sob certa ótica, “no mesmo barco”. O que acontece com um reflete no outro.

 

Estamos juntos no meio de uma floresta. Há momentos divinos, de profundo encanto. Há outros difíceis que pedem uma transformação. Existe ele, o cliente, existo eu, e existe a relação que nós dois criamos a cada momento. Tanto ele quanto eu estamos na floresta para recuperar nosso movimento de saúde, nossa evolução. Temos papéis, funções diferentes, mas o objetivo é o mesmo.

 

Às vezes o terapeuta-guia erra. Neste safári na floresta, quando o bicho ‘pega’ de verdade, não é fácil não. E errar é humano. Tais erros poderão, às vezes, confundir e ‘enlouquecer’ o meu cliente, o tal viajante que confiou em mim e me fez companheira de sua aventura. 

 

Mas, na minha experiência, se o erro cometido for reconhecido e assumido com simplicidade, pode-se reparar o dano e até ganhar com isto. Ganhar mais confiança um no outro, mais sabedoria.

 

Isto significa que o terapeuta-guia precisa conhecer bastante bem a floresta – seu próprio inconsciente e seu caráter; numa linguagem menos técnica, precisa saber de suas qualidades e de suas limitações, conhecer-se, enfim. Se assim for, ele se beneficiará muito ao acompanhar seu cliente. Aprenderá também e se curará com os mesmos remédios que foram juntos descobrindo pelo caminho. 

 

Este tem sido um bom fruto de meu trabalho: me terapeutizar junto com o cliente. Para mim, portanto, ser terapeuta é também um rico caminho de desenvolvimento pessoal.

 

 

Mesa-redonda no Sedes Sapientae,

Universidade Católica de São Paulo.

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